sexta-feira, 26 de março de 2010

Promessas e dívidas

Fonte: www.fabiotv.zip.net

O mundo é um celeiro de craques. Todos os anos em todos os cantos surgem jogadores mágicos, miraculosos, capazes de mudar o mundo da bola e que não vão a lugar algum. Quer dizer, vão, mas não para os campos, não para os Reais, Atléticos ou Sport Clubs dos dólares múltiplos e das primeiras páginas. Inúmeros tentam e falham, enquanto outros tantos, inumeráveis, são podados ainda antes e nem mesmo têm chance de tentar. Alguns quebram a perna, rompem ligamentos, fraturam a sua fábula, enquanto outros se apequenam, se encolhem, se desiludem.

O sucesso de poucos é forjado pelas falhas de muitos e pelo número restrito de oportunidades. Alguns superam os obstáculos, enquanto que alguns possíveis gênios vão parar em cadeias, em posições servis, em botequins e se tornam mestres melancólicos da arte que jamais puderam envergar diante das multidões, sob o incentivo dos milhões, sob o apoio de uma equipe. O futebol profissional é um espetáculo do qual participam torcedores, jornalistas, empresários, cartolas, jogadores, técnicos, árbitros, etc. É um espetáculo que conta com a suspensão de crença de seus participantes, que exige um salto de fé, um acreditar sem alternativas: é preciso para o esporte que se acredite que aquilo tudo é necessário, essencial, fundamental.

Ao colocar em questão a necessidade da existência da estrutura que cerca este esporte, ao questionar o papel que o futebol espetacular cumpre nas sociedades do mundo, o que ele move, o que leva, o que traz, a quem serve, a quem explora, quanto se perde, quanto se ganha, o questionador ousa observar a coxia, as marcações de cena, as cortinas, o palco. Procura os zíperes das roupas, a falha das maquiagens, as inconsistências do roteiro. O questionador desmistifica o futebol e ao fazê-lo, é impossível não ser tomado por um certo asco.

Ser apaixonado pelo futebol profissional exige abnegação e uma vontade consciente de ser entretido pelos mágicos bem-pagos da bola em jogo. Exige ignorar o Berlusconi, os petrodólares conseguidos com mão-de-obra semi-escrava do sheik Mansur do Manchester City, os euros límpidos de Roman Abramovich e Kia Joorabchian, as dívidas e receitas absurdas dos clubes, as parceirias entre clubes e prefeituras, entre jogadores e jornalistas, entre confederações e emissoras de televisão. Exige esquecer o calcciocaos e as demais denúncias globalizadas de manipulações de resultados em prol de bolsas de apostas, jogos como o recente Chievo e Catania, o título brasileiro do Corinthians-MSI de 2005.

O futebol é um jogo lindo e é arrebatador ver bons jogadores em campo, mesmo que estes jogadores tenham sido eleitos pelo empresariado (o que costuma significar para os meninos das bases 'donos das oportunidades'), pela padronização comportamental e moral, pelas peneiras suspeitas, pelos grupos de jogadores com quem jogaram. O futebol é maravilhoso, enquanto jogo. Significa muito mais do que vinte e dois homens e uma bola - é, na verdade, a síntese das capacidades peculiares intelectuais e físicas dos seres humanos, síntese de tudo aquilo que nos diferencia dos animais.

E é por conta do maravilhamento suscitado por um drible de gênio, como o de um Ronaldinho Gaúcho em seus lampejos, que muitos ignoram que o seu salário, hoje, depende de um homem como Berlusconi; é por conta da visão de jogo de Kaká que, quando o vemos em campo, o aplaudimos, mesmo quando desprezamos a mensagem conservadora do protestantismo hipócrita das classes médias-altas do Brasil que ele faz questão de carregar; é por conta disso que tantos flamenguistas acusam a imprensa de conspiração quando tudo o que ela está fazendo é vigiar os passos de Adriano e sua rapaziada. É por conta disso que santistas como eu não só receberam o Robinho de braços abertos, mesmo depois do que ele fez para sair do Santos, como ainda passamos estes cinco anos em que ele esteve fora torcendo por ele.

O mundo é recheado de cracks que se espalham a todo o tempo por todos os cantos, ao passo que as estruturas que quebram são postas de pé novamente - com algumas diferenças fundamentais aqui, outras ali.
Tantos outros poderiam estar no gramado dos jogos profissionais, mas acabaram indo parar em outros cantos, às vezes por falta de oportunidade no momento certo, às vezes por falta de momentos certos para oportunidades. E mesmo entre muitos dos que jogam profissionalmente, é sabido que apenas poucos deles puderam ter acesso, quando em sua fase de crescimento, a equipamentos e acompanhamentos adequados... O futebol globalizado, galaticizado, é um mundo de ilusões, é feito para que olhemos apenas para as quatro linhas - e para os acompanhamentos realizados por profissionais qualificados.

Mas às vezes, quando nos apontam o céu, tudo o que conseguimos fazer é nos determos antes a observar o dedo que aponta. Nesses momentos, não tem como amar o espetáculo, ainda que haja como amar o futebol. Vamos torcer para que, quando o modelo atual do futebol globalizado ruir e um novo modelo for colocado de pé a partir dos seus escombros, algo mais justo e menos sujo surja no lugar.

Em tempo: por onde anda Luan Andrade Santana, ganhador do Joga 10? No Feirense? No Santos?

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